O que Procede do Coração
“Escutai e compreendei bem isso: – Não é o que
entra na boca que macula o homem; O que sai
da boca do homem é que o macula. – O que sai
da boca procede do coração e é o que torna impuro
o homem;” (S. Mateus, Capitulo XV v.11)
O Evangelho Segundo Espiritismo
Capítulo VIII – item 8
Dentre os velhos inimigos a burilar na caminhada
evolutiva, as tendências que assinalam
no nosso estágio de aprendizado
espiritual constituem fortes impulsos da
alma que desviam o ser de seu trajeto natural
na aquisição das virtudes.
Tendências são inclinações, pendores
que determinam algumas características
comportamentais da personalidade. Muitas
delas foram adquiridas em várias etapas
reencarnatórias e sedimentam o sistema
de valores, com o qual a criatura faz
suas escolhas na rotina da existência.
Entre essas inclinações, vamos encontrar
a adoração exterior como sendo hábito
profundamente arraigado na mente determinando
forte vocação para a ritualiza-
ção, o místico e a valorização de tradições
religiosas, através da qual o homem faz
seu encontro com Deus.
Muito natural que nos dias atuais as manifestações
exteriores em relação à divindade
prevaleçam na humanidade terrena,
considerando que o seu trajeto espiritual
se encontra bem mais perto da animalidade
que da angelitude.
Nesse sentido, é interessante analisar
que, mesmo nas fileiras da doutrina da
fé raciocinada, encontra-se a maioria de
seus adeptos engalfinhados em vigorosas
reminiscências que fizeram parte das
movimentações da alma nas vivências
das religiões tradicionais. Atrofiamento do
raciocínio, supervalorização dos valores
institucionais, engessamento de conceitos,
sensação de missionarismo religioso,
atitude de supremacia da verdade, idolatria
a seres “superiores”, submissão de
conveniência a líderes, relação de absolvição
ou penitência com práticas espíritas,
desvalorização de si mesmo em razão da
condição de pecador, condutas puritanas
perante a sociedade e seus costumes,
cultivo de comportamentos moralistas,
confusão entre pureza exterior e renova-
ção íntima, essas são algumas tendências
que se apresentam junto aos nossos celeiros
espirituais, remanescentes de fortes
condicionamentos psíquicos.
Semelhantes caracteres imprimiram um
padrão de práticas e conceitos no movimento
espírita que, de alguma forma, estipulam
referências a serem adotadas pelos
seus seguidores.
Com todo respeito e fraternidade, necessitamos
urgentemente a coragem de avaliar
com sinceridade as influências “éticas”
perniciosas dessas tendências no quadro
de nossas vivências espíritas. São reflexos
inevitáveis do crescimento evolutivo
que ninguém pode negar, mas daí a aceitá-las
sem quaisquer esforços de melhoria,
é conivência e pusilanimidade. Torná-
-las uma referência religiosa pela qual se
deva reconhecer o verdadeiro seguidor do
Espiritismo é uma atitude recheada de ancestralismo
e hipocrisia.
A comunidade espírita, que tantas benfeitorias
tem prestado ao mundo, carece de
uma reavaliação global em sua estrutura
no que tange à noção de comprometimento.
Convém que os líderes mais sensibili-
zados instiguem a formação da cultura da
franqueza com fraternidade e clareza, no
intuito de estabelecer uma oxigenação na
sementeira para obtenção de mais qualidade
nos frutos.
Muitos companheiros, os quais merecem
nossa compreensão, costumam disseminar
a concepção de que tudo deve correr
conforme os acontecimentos, e justificam-
-se com a frase: “se fazendo assim está
dando certo, porque mudar?” Em verdade,
o que deveríamos pensar é: se fazendo
assim estamos colhendo algo, então
quanto não colheríamos se fizéssemos
melhor, se nos abríssemos às renovações
que a hora reclama?!!!
Há uma acomodação lamentável que precisa
ser aferida. A noção espírita de comprometimento
foi acintosamente assaltada
pelas velhas tendências de conseguir
o máximo fazendo o mínimo. É a devoção
exterior, a influência marcante da personalidade
impregnada de religiosismo estéril
querendo tomar conta da cabeça e do
coração daqueles que estão sendo chamados
a novos e mais altaneiros compromissos,
na espiritualização de si mesmos
e da comunidade onde florescem.
Frágil padrão de avaliação da conduta
espírita tem tomado conta dos costumes
entre os idealistas. Enraizou-se o axioma
“espírita faz isto e não faz aquilo” que tenta
enquadrar o valor das ações em esteriótipos
de insustentável bom senso. Estereótipos,
como seria óbvio, que sofrem
as fantasias do “homem velho” habituado
a sempre rechear com facilidades os seus
caminhos em direção ao Pai, a fim de não
ter que se enfrentar e assumir a árdua batalha
contra suas ilusões enfermiças.
É assim que vamos notando uma supervalorização
em coisas, como a não adoção
de alimentação carnívora, a impropriedade
de frequentar certos ambientes sociais,
a fuga da ação política, a análise da vida
dissociada das ciências e conquistas humanas,
a interminável procura do passe
como instrumento de melhoria espiritual
ao longo de anos a fio, não chorar em velórios,
distanciamento da riqueza como se
fosse um mal em si mesma, cenho carregado
como sinônimo de responsabilidade,
silêncio tumular nos ambientes espíritas.
Se fumar, não é espírita; se separar matrimonialmente,
tem a reencarnação fracassada;
Se ingerir alcoólicos, não pode ser
considerado alguém em reforma; se for
homossexual, não pode entrar no centro,
e assim prossegue as idiossincrasias que
são estipuladas umas aqui, outras acolá.
Absolutamente não devemos desprezar
o valor de todas essas questões, quando
bem orientadas para o bom senso e a ló-
gica. Entretanto, nenhuma dessas posturas
é referência segura sobre a qualidade
de nossos sentimentos, o que parte do coração.
O que sai do coração e passa pela
boca é o critério de validação de nossa
realidade espiritual. Por ele se conhece a
verdadeira pureza, a pureza interior que é
determinada pela forma como sentimos a
vida que nos rodeia. E sobre esse assunto
temos condições de avaliar o que se pas-
sa no nosso íntimo, jamais o que “vai” no
coração do outro.
Sem dúvida alguma, a pureza exterior pode
ser um ensaio, um primeiro passo para
o ingresso definitivo da Verdade em nosso
coração. Todavia, amigos de ideal, pensemos
se não estamos passando tempo demais
na confortável zona do desculpismo,
desejosos de facilitar para a consciência
nossa noção sobre o que é “ser espírita”.
A quem muito recebeu, muito será pedido.
Em conclusão, convenhamos que há muitos
companheiros queridos do nosso ide-
ário satisfeitos com o fato de apenas evitarem
o mal, entretanto, estejamos alertas
para a única referência ética que servirá a
cada um de nós no reino da alma liberta
da vida física: fazer todo bem que pudermos
no alcance de nossas forças. Para
isso, somente trabalhando por uma intensa
metamorfose nos reinos do coração de
onde procedem todos os males.